Cony e o reencontro com Deus

Cony foi uma m�quina de escrever, uma arma. Foi a caneta afiada que sangrou a ditadura com textos nos jornais

Por Leandro Mazzini

Rio - Ele nunca deixou de ser o menino de Lins de Vasnconcelos, bairro onde nasceu no Rio de Janeiro. Disfarçava bem, no alto de sua sábia velhice. Considerava-se só mais um mortal entre tantos, a despeito de sua genialidade imortal, a que deixou em livros, e a que deixou em lições para aqueles com quem conviveu. Fui um desses privilegiados. Nos tornamos amigos, ele um mestre. E acredite, leitor, Carlos Heitor Cony, quando pequeno, sonhava ser maquinista da Central do Brasil. A vida tratou literalmente de lhe tirar dos trilhos, e inegável dizer que esse descarrilamento do destino foi bom para ele e todos nós: o colocou na trilha de muita gente que acompanhou sua carreira jornalística e literária. O Brasil perdeu uma de suas locomotivas pensantes, meus caros.

Melancólico, às vezes no texto, e cético quanto a tudo na vida exagero dizer pessimista , Cony moldou-se outro depois que deixou o seminário ainda jovem. Nisso lá se vão uns 75 anos. Tornou-se o homem profano que repetia ser, mas, em minha opinião, nunca deixou de buscar Deus, entender o Deus e o Cristo que ele 'abandonou' décadas atrás no seminário. Creio que nos últimos anos, em sua introspecção, tentava entendê-Lo, decifrá-Lo, e assim O desafiava em seus textos, com sua sagacidade. Numa de nossas conversas em seu escritório, eu insistia para que ele revelasse o que seria o 'Messa para Papa Marcello', o livro póstumo que deixou na gaveta (um mistério se ele o concluiu). Apostaria que este seria a sua prestação de contas com Deus.

Em 2006, Cony aceitou meu convite para visitar o antigo Seminário São José, no Rio Comprido, onde estudou havia décadas, e à ocasião era a então redação do Jornal do Brasil. Foram três horas de papo. Cony revisitou com olhar e peculiar memória cada cômodo do casarão secular. Lembrou nomes, episódios e até trejeitos de seus personagens. Confidenciou que ali se inspirou para escrever 'Informação ao Crucificado', o seu rompimento com o chamado Divino e a entrada neste mundo que conhecemos.

Foi um homem generoso para com os próximos. Sempre me apoiou. Quando pedi demissão do JB em 2003 para estudar, me ligou dando bronca. Quando sugeri prefácio para o meu segundo livro de crônicas, o fez sem pestanejar e apareceu no lançamento no Rio Sul, numa noite de 2010, ficou ao meu lado por mais de uma hora. Na posse na ABL, de fardão, sentou-se ao meu lado no banquinho na porta da Academia à espera de ser chamado e soltou baixinho: "Tô nervoso". Era o menino do Lins, o de sempre.

Cony foi uma máquina de escrever, uma arma. Foi a caneta afiada que sangrou a ditadura militar com seus textos nos jornais. Foi um dos melhores ficcionistas que o Brasil já teve. Criativo demasiadamente, deixou romances premiados e literatura de primeira num país que valoriza bundas na TV e músicas ruins que são pagas para tocar nas rádios. Cresceu nessa mídia sendo destaque e diferenciado. Pouca gente sabe (ou se lembra) que fez capas histórias da revista 'Manchete', que era amigo de Adolpho Bloch e biógrafo oficial do ex-presidente Juscelino Kubitschek, que 'herdou' a mega sala-suíte de JK no prédio da 'Manchete' no Flamengo, que criou e escreveu as novelas 'Kananga do Japão' e 'Dona Beija' (ah, Maitê Proença...), sucessos na TV dos anos 80.

Gostava de se esconder. Até em sua morte preferiu o anonimato sem cerimônias, homenagens. Partiu quieto e silencioso como gostaria. Mas, pela grande figura que se tornou, deixou um rastro ensurdecedor em todas as almas que conheceram seu trabalho. E nas que vão conhecer.

Coment�rios

�ltimas de Opini�o