Livro conta hist�rias de porteiros que migraram do Nordeste para o Rio

Muitos constru�ram patrim�nio consider�vel a partir da portaria

Por WILSON AQUINO

23/02/2018 - O porteiro Franscisco Ferreira do Nascimento trabalhar a 30 anos como porteiro na Lapa. Foto: Luciano Belford / Agencia O Dia
23/02/2018 - O porteiro Franscisco Ferreira do Nascimento trabalhar a 30 anos como porteiro na Lapa. Foto: Luciano Belford / Agencia O Dia -

Rio - De repente, a porta se abre. Com certeza foi o Chiquinho, o gentil porteiro do Edifício Ragazzi, na Lapa, que girou a maçaneta para adiantar a vida de um dos 200 moradores que chegou cheio de embrulhos na mão. Mas, para que hoje o Chiquinho abra portas, há 30 anos alguém lhe abriu uma. Vida de porteiro é que nem iceberg: a parte visível, que conhecemos, é sempre muito menor do que a submersa, aquela que, invariavelmente, não tomamos conhecimento.

Porém, um projeto literário traz à tona a história de algumas dessas figuras emblemáticas da sociedade carioca. 'Da minha porta, vejo o mundo', da Editora Letras & Sons Comunicação, narra a vida de 12 porteiros, que chegaram ao Rio de Janeiro em busca de oportunidades e, a partir da portaria de um prédio, construíram sua história. E, em alguns casos, belo patrimônio.

"É um personagem importante na vida de quem mora em grande cidade e que não tem a história contada", explicou o jornalista Aydano André Motta, responsável pelas entrevistas e textos do livro. "Existe o universo da invisibilidade dos porteiros: eles trabalham, fazem parte da vida das pessoas, mas são pouco conhecidos. O livro tem uma pegada social", acrescentou a editora Alcione Koritzky, que produziu o livro junto com o documentarista Sylas Andrade, o dono da ideia. "O projeto joga luz sobre a profissão, ajuda a contar a história da migração do Nordeste para o Rio, a partir da década de 1950, e é uma homenagem a essa categoria que faz parte da nossa vida", resumiu Andrade.

A história de Chiquinho, como é carinhosamente conhecido o porteiro Francisco Ferreira do Nascimento, 50 anos, cabe perfeitamente em qualquer livro. Antes de vir para o Rio, há 30 anos, enchia as mãos de calo na plantação de abacaxi, em Sapé, cidade de 50 mil habitantes da Paraíba, a 40 km da capital, João Pessoa. "Trabalhei na roça dos 12 aos 20 anos. Não aguentava mais, queria outro emprego, mas lá não tinha. Pedi as contas, e o patrão, em vez de me dar dinheiro, me indenizou com uma passagem só de ida para o Rio", lembrou Chiquinho. Foram dois dias de viagem em um ônibus da Itapemirim. Chegando à Cidade Maravilhosa, amigos arrumaram emprego para ele no prédio, onde está até hoje.

Segundo Aydano Motta, a trajetória desses bravos nordestinos é uma epopeia. "Eles têm história de vida que nos envergonha com nossos draminhas de classe média. Geralmente, têm infância miserável, saem de casa para um lugar hostil, trabalham muito e constroem patrimônio. São personagens incríveis". Andrade chama a atenção para a importância que o porteiro acaba tendo na vida do prédio. "A relação porteiro-morador do Rio é especial, especialmente nessa crise de confiabilidade que a gente enfrenta. Eles estão sempre dispostos a ouvir, mas não estão ali para interferir na tua vida. Veem nossos filhos crescerem e acabam testemunhando histórias de várias vidas", afirmou. E veem mesmo. "Peguei o síndico no colo", contou Chiquinho, para quem o segredo da profissão é "ser amigo, tratar com respeito tanto os adultos quanto as crianças e ficar atento". No Rio, Chiquinho casou, teve uma filha (hoje com 19 anos) e conseguiu comprar um apartamento em Inhaúma, na Zona Norte da cidade. No seu rastro, vieram os quatro irmãos, que também trabalham como porteiros.

Nem o IBGE sabe quantos porteiros existem no Brasil. No Rio, a estimativa é que sejam 120 mil. Uma curiosidade: o Dia do Porteiro é celebrado no 29 de junho, em homenagem ao padroeiro da categoria: São Pedro, o 'porteiro do céu'.

Engravidou donzela e fugiu para n�o morrer

Livro tem textos em portugu�s e espanhol - Luciano Belford / Agencia O Dia

'Da minha porta, vejo o mundo' recebeu um tratamento de luxo. O livro, que conta a hist�ria de 12 porteiros que vieram do Nordeste para o Rio, tem capa dura e � bil�ngue (portugu�s-espanhol). O projeto gr�fico � da designer Raquel Cordeiro, e as fotos, do consagrado Paulo Marcos de Mendon�a Lima.

Mas a riqueza das hist�rias de vida � que d�o beleza especial � obra. Como a de Amadeu Ramos Matias, que veio fugido para o Rio, em 1981, quando tinha 17 anos, porque engravidou uma mo�a. O pai da donzela, propriet�rio de uma espingarda, queria lavar a honra com sangue. De acordo com Aydano Motta, que, junto com o jornalista Maur�cio Fonseca, entrevistou os personagens, quando Seu Amadeu chegou ao Rio n�o sabia nem segurar uma vassoura, pois trabalhava na lavoura. "Hoje � chefe da portaria, manda em 15 empregados e construiu um pr�dio de quatro andares, em Rio das Pedras. � dele!", afirmou Motta, que destaca o car�ter empreendedor de boa parte dos porteiros. "Todos tamb�m t�m um mesmo desejo, que � voltar para a terra natal. Geralmente, lugar pequeno, escondido. Por�m, isso acaba gerando um conflito de gera��es, porque os filhos que nascem no Rio n�o querem ir".

O personagem mais idoso do livro � Severino Pereira Ramos, 83 anos, que chegou ao Rio em 1951, vindo de Tapero�, Para�ba. "Foram 16 dias de viagem no pau de arara!", disse Motta. Assim que chegou, Severino trabalhou em obra, mas foi demitido. Sem ter onde dormir, lhe restou o cemit�rio. "Naquela �poca, os vel�rios viravam a noite. Ele entrou na capela mais vazia do Caju, fingiu que conhecia o defunto, sentou no banco e dormiu". O mais jovem, Josias, tem 26 anos e veio de Pernambuco para o Rio, em 2007, de avi�o.

200 quilos de feij�o por passagem para o Rio

Francisco saiu do Cear� para Vila Isabel - fotos Luciano Belford / Agencia O Dia

Outro Francisco � propriet�rio da cadeira de porteiro de um pr�dio. Francisco Vieira dos Santos, 55, trabalha no hall do Edif�cio Cristal, em Vila Isabel, h� 31 anos. Veio fugido da seca, que castigava o Munic�pio de Ipueiras, distante seis horas de �nibus de Fortaleza, no Cear�.

"Eu tinha 21 anos e era muito inquieto", lembrou Francisco, que trabalhava na ro�a. "�ramos 12 irm�os, na lavoura de milho, feij�o e mandioca. S� que na seca a planta n�o desenvolve", explicou Francisco, justificando a migra��o: "Na ro�a, a gente n�o morre de fome, mas tem que sair pra procurar coisa melhor".

Para comprar a passagem s� de ida para o Rio, Francisco teve que vender 200 quilos de feij�o. Logo que chegou, empregou-se no Edif�cio Cristal, onde permanece at� hoje. S�o 84 apartamentos e cerca de 250 moradores. Francisco conhece todos eles pelo nome. "Ele � um amig�o. Sem o Francisco, o pr�dio n�o funciona. Aqui, moram muitos idosos e, volta e meia, ele socorre um", contou a s�ndica Romana Alves Correia, 65. "O segredo � respeitar as pessoas", ensinou o porteiro, que � torcedor fan�tico do Flamengo. "Quando tem jogo e eu estou trabalhando, o jeito � ouvir no radinho. Mas a s�ndica autoriza", se apressou em esclarecer.

Francisco � pai de um filho e tem uma netinha de oito meses. Mas, apesar de viver h� 31 anos no Rio de Janeiro, nunca perdeu o v�nculo com a terra natal. "J� voltei l� mais de dez vezes e sempre mandei dinheiro para minha m�e", contou. Com o trabalho na portaria, Francisco comprou um apartamento na Pavuna. O pr�dio dele tem quatro andares, mas sem porteiro. "N�o tem esse luxo, n�o".

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